Jornal O Globo, em 13/05/2014

O massacre de Fabiane de Jesus, no Guarujá, exasperou esta nova marca de ruptura entre a sociedade civil e os aparelhos da segurança em nossos dias. Alastra-se o recurso à violência como forma de justiçamento selvagem pela população, somando o cansaço à espera da ação pública. Regressamos à violência imediata como torna ancestral ao “olho por olho” na vida coletiva. O linchamento consagra o anonimato da agressão como fosse um reclamo no gesto espontâneo e incontido de vizinhos e passantes por uma vindita coletiva.

Entranha-se, nesse nosso inconsciente social, um sentimento irreversível da lentidão da ordem pública, num repúdio mobilizado na hora. Tal de par, muitas vezes, com o espanto subsequente com o cometido. E vem, inclusive, o arrependimento extremo, como se os linchamentos nascessem de um transe, numa pretendida resposta imediata ao dito crime monstruoso. É o que reforça, em muito, a informação virtual, senão, já, o rito da caça ao indigitado malfeitor. O boato substitui-se, de logo, à veracidade da informação, no contágio das certezas do instante, mesmo se, no caso exemplar de Fabiane, seu retrato não tivesse qualquer parecença com a sequestradora de menores e praticante da magia negra.

A descarga da vindita não fica só no lançamento das pedras, mas no arremesso da vítima à calçada aos pontapés, ao esmagar da cabeça pelas rodas de bicicleta e à passagem do veículo, repetidamente, por cima do corpo caído. É todo um sentimento da absoluta impunidade do instante, a marcar esta nova insegurança do nosso inconsciente coletivo. O que se depara é a crescente desmoralização das garantias da ordem pública, na sociedade de nossos dias. Mas, talvez, esse justiçamento reflita o anseio de restauro do imperativo primordial da ordem pública, inseparável da vida social. Da mesma forma, colabora com esta violência a crescente caricatura da própria polícia, nas milícias urbanas, como aparelhos das gangues e da contraordem, no tráfico de drogas das nossas megalópoles. O horror da morte de Fabiane chegou à própria bandidagem indignada, no sentenciamento dos criminosos. Impôs-se, num inédito tribunal clandestino para os meliantes, o castigo do insuportável.

Membro do Conselho das Nações Unidas para a Aliança das Civilizações, membro da Academia Brasileira de Letras e da Comissão Brasileira de Justiça e Paz.

 

 

 

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