Jornal O Globo, 9/02/2017 
Candido Mendes*

O dia a dia do governo Trump só aumenta o espanto frente às surpresas do programa e à falta de coerência do que se propõe na Casa Branca. Não temos precedentes de uma tal incongruência de iniciativas deixadas, por inteiro, ao alvedrio da hora e do humor do presidente. Somam-se, nessa perplexidade, velhos ressentimentos do comandante em conflitos de campanha, inclusive, contra o ideário do próprio partido vencedor. E até onde irá a quebra das mais elementares propostas com que os republicanos confrontariam a oposição dos democratas?

O abate começa no desmonte das relações internacionais, ao arrepio do ideário de ambos os partidos. Deparamos a denúncia do Tratado do Pacífico, a garantir a presença da superpotência frente à Índia e à China, numa troca planetária de influências e contrapartidas. À quebra do macrotratado, seguem-se as incertezas quanto ao Nafta e o abalo da presença americana na União Europeia. Desestabilizam-se, ao mesmo tempo, as delicadíssimas relações com Israel, na afronta à convivência com o Estado Palestino, no intuito de levar a Jerusalém a embaixada dos Estados Unidos.

Avança, de maneira devastadora, o isolacionismo da Casa Branca, já com impactos decisivos sobre o direito fundamental de ir e vir, consoante a Declaração das Nações Unidas. O que se vê na exasperação imediata dos libelos de Trump é o proclamar que herdou um governo “de muita conversa e pouca ação” e que haveria um passivo de protagonismo do mais poderoso país do mundo. Só têm se multiplicado, nestes dias, os protestos saídos à rua, a se somarem à condenação formal de governadores como o da Califórnia, suspendendo a proibição à entrada no país de viajantes de sete países da África e Oriente Médio, levando a abarrotar aeroportos americanos de passageiros, imobilizados. Aí estão, também, as decisões dos tribunais, arguindo a inconstitucionalidade das iniciativas do atual governo.

Dispara a oposição a Trump no seio do partido, concentrando o apoio a ele a uma minoria radical e cada vez mais minguante. Desaparece qualquer calendário de expectativas, no que é o resultado de uma ruminação individual do presidente, à margem de qualquer resquício de um colegiado. O intrínseco democratismo americano reage diante do escândalo, na Casa Branca, tanto pelo pedido de impeachment, quanto pela sucessão das marchas que não saíram do asfalto, a partir da posse. Desde então, configurou-se o atentado do presente governo ao estado de direito. E a oposição sabe, e de logo, que não tem a enfrentar o ímpeto de qualquer ideologia, por mais que radical, mas um megalômano que diz nunca ter lido um livro e nos deixa esse suspense sobre o que será a aberração do dia seguinte. .

Presidente do Senior Board do Conselho Internacional de Ciências Sociais – UNESCO, Membro da Academia Brasileira de Letras e da Comissão de Justiça e Paz.

 

 

 

 

 

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